Vontade de?...

Tem total consciência de tê-lo magoado. Deixar um amante depois de seis anos de vida em comum não é brincadeira. Por isso pede aos amigos que não o deixem sozinho, que o ajudem a superar esses momentos difíceis. Não passou um dia e já estão todos em cima dela como corvos. Telefonam, querem marcar encontros, escrevem cartões, chegam até a mandar flores. É a primeira vez na vida que recebe flores. Quando pede notícias do ex-amante, dizem-lhe que está bem e ela não consegue saber se estão dizendo a verdade. Gostaria de certificar-se disso pessoalmente, mas seu gesto seria considerado por ele uma maneira de reconsiderar a decisão e teria como resultado abrir uma situação já fechada. Mas é estranho que ele não dê sinal de vida. Suspeita que os amigos estejam lhe contando sabe-se lá o que, talvez que ela o traísse. Decide falar com o filho dele, de dezessete anos. Este faz o gênero franco, explícito, e logo a interrompe.

- Por que você está atrás dele? Está com vontade de trepar?

Ela gira o corpo em sua direção. Emite uma voz azeda, que não é a sua.

- Vontade de?...

O garoto sai batendo a porta. E é aquela pancada que lhe permite entender sem possibilidade de equívocos que sua vida definitivamente mudou, que está recomeçando do zero.

Que está sozinha e não deve ter piedade. Que não é esse sentimento que irá ajudá-la na vida.

Conto integrante do livro O Fio Perigoso das coisas e outras histórias – Idéias para possíveis filmes transformadas em contos escritos com a precisão de um mestre. Lançado pela Editora Nova Fronteira 1990. Livro mais que obrigatório na estante de um cinéfilo. Na publicação, Michelangelo Antonioni divide com o leitor seu processo de criação através de pequenos contos onde, em alguns deles, faz um pequeno resumo do projeto e explica o que não deu certo.

Comentários

Camila Fink disse…
Boa dica. Já está aqui na minha wishlist. O nome do livro O fio Perigoso da Coisas já dá motivos suficientes imaginar que deve ser interessantíssimo.
Anônimo disse…
Adorei o conto!!! adicionei o livro, que não conhecia, à minha listinha!
ignifugaciones disse…
Lejos queda ya que el Cine nos cuenten historias como las de Michelangelo Antonioni, y es que resulta complicado no ponerse nostálgico.

Echo de menos aquellas tardes de cine en ese sofá viejo en mi piso de estudiantes... Todo estaba un poco sucio, colillas y libros por toda la habitación... pero siempre había una amante fugaz que hacía brillar los días grises con algún beso o algo más.

Viva el CINE con mayúsculas!!