Cortina de Fumaça / Sem Fôlego

(Smoke / Blue in the Face – Wayne Wang – 1995)

The New York Times – 25 de dezembro de 1990

“O Conto de Natal de Auggie Wren” de Paul Auster

Foi no verão de 76, quando eu comecei a trabalhar para Vinnie. O verão do Bicentenário. Certa manhã, um garoto entrou na loja e começou a roubar coisas. Ficou parado junto da estante de livros de bolso, perto da vitrine da frente, e enfiava revistas pornô embaixo da camisa. Tinha muita gente perto do balcão, de modo que não percebi logo, mas quando percebi o que ele estava fazendo comecei a gritar. Ele saiu correndo como um coelho, e quando consegui sair de trás do balcão, já estava no meio da Sétima Avenida. Corri atrás dele por mais ou menos meio quarteirão, e aí desisti. Ele deixou cair alguma coisa no meio do caminho, e como eu não queria mais correr, inclinei-me para ver o que era. Acontece que era a carteira dele. Não tinha dinheiro, mas estavam lá a carteira de motorista e mais três ou quatro fotografias. Acho que eu poderia ter chamado a polícia e mandando prender o cara. O nome e o endereço estavam na carteira de motorista, mas senti uma certa pena dele. Era só um bandidinho desastrado, e quando vi as fotos na carteira não consegui sentir muita raiva.

Roger Goodwin era o nome do cara. Lembro que numa das fotos ele estava de pé ao lado da mãe. Noutra, segurava um troféu que ganhou na escola e sorria como se tivesse ganhado uma bolada no turfe. Simplesmente não tive coragem. Um garoto pobre do Brooklyn, sem muito futuro na vida, e, também, quem se importa com algumas revistas sujas?

Então fiquei com a carteira. De vez em quando me dava vontade de mandá-la para ele, mas fiquei adiando e nunca fiz nada a respeito. Então chegou o Natal e eu não tinha nada para fazer. Vinnie ia me convidar para sua casa, mas a mãe dele ficou doente e ele e a mulher tiveram que ir para a Flórida no último minuto. Então eu estava sentado no meu apartamento naquela manhã, sentindo certa pena de mim mesmo, e aí vi a carteira do Roger Goodwin numa prateleira da cozinha. Pensei: puxa vida, por que não fazer uma boa ação? Então vesti o casaco e saí para devolver a carteira.

O endereço era em Boerum Hill, em algum lugar dos conjuntos. Estava gelado aquele dia, e lembro-me que me perdi algumas vezes tentando encontrar o prédio. Tudo parece igual naquele lugar, e você fica percorrendo o mesmo caminho pensando que está em outro lugar. De qualquer modo, finalmente cheguei ao apartamento que estava procurando e toquei a campainha. Nada aconteceu. Achei que não havia ninguém ali, mas por via das dúvidas tentei de novo. Esperei mais um pouco, e quando estava quase desistindo, ouvi alguém lá dentro se aproximar da porta. Uma voz de velha perguntou: “Quem está aí?”, e eu disse que procurava Roger Goodwin. “É você, Roger?”, a velha perguntou, e quando ela destravou as quinze trancas e abriu a porta...Ela devia ter pelo menos 80 anos, talvez 90, e a primeira coisa que percebi foi que era cega. “Sabia que você viria Roger”, ela disse. “Sabia que você não esqueceria sua Vovó Ethel no Natal.” Então ela abriu os braços como se fosse me abraçar. Eu não tinha muito tempo para pensar, entende? Tinha que dizer alguma coisa bem depressa, e antes que eu pudesse perceber o que estava acontecendo ouvi as palavras saindo de minha boca: “É isso mesmo, Vovó Ethel. Vim visitar a senhora no Natal”. Não me pergunte por que eu fiz isso. Não tenho a menor idéia. Apenas aconteceu daquele jeito, e subitamente aquela velha estava me abraçando ali na porta, e eu retribuindo o abraço. Foi como se a gente tivesse começado um jogo, mas sem ter combinado as regras. Quer dizer, aquela mulher sabia que eu não era o neto dela. Ela era velha e meio lelé, mas não estava tão louca que não distinguisse entre um estranho e o próprio neto. Mas ela estava contente em fingir, e como de qualquer forma eu não tinha nada melhor para fazer, fiquei feliz de estar ali com ela.

Então entramos no apartamento e passamos o dia juntos. Toda vez que ela me perguntava como eu estava, eu mentia. Disse que tinha arranjado um bom trabalho numa tabacaria, disse que ia me casar, contei mil histórias bonitas, e ela fingiu que acreditou em tudo. “Que bom, Roger”, ela dizia, balançando a cabeça e sorrindo. “Eu sempre soube que as coisas iam dar certo para você”.

Depois de um tempo, comecei a sentir fome. Não parecia haver muita comida na casa, então fui até uma mercearia ali perto e trouxe uma porção de coisas: frango assado, sopa de legumes, salada de batata, várias coisas. Ethel tinha umas garrafas de vinho escondidas no quarto e preparamos um jantar de Natal gostoso. Lembro que nós dois ficamos meio alegres com o vinho, e depois de comer fomos para a sala de estar, onde as cadeiras eram mais confortáveis. Eu precisava urinar; pedi licença e fui até o banheiro no corredor. Foi então que as coisas mudaram de rumo. Já era muita maluquice fingir que era o neto de Ethel, mas o que eu fiz depois foi realmente uma loucura, e nunca me perdoei por isso.

Entrei no banheiro e vi, contra a parede ao lado do chuveiro, uma pilha de seis ou sete máquinas fotográficas. Novinhas, de 35 milímetros, ainda nas caixas. Imaginei que fossem obra do verdadeiro Roger, um lugar para estocar suas pilhagens. Eu nunca havia tirado uma foto em minha vida, e com certeza nunca havia roubado nada, mas no momento em que vi aquelas máquinas ali no banheiro decidi que queria ter uma. Assim, simplesmente. E sem parar para pensar pus uma caixa embaixo do braço e voltei para a sala.

Fazia 2 ou 3 minutos que eu tinha saído da sala, mas Vovó Ethel havia adormecido. Acho que foi vinho demais. Fui até a cozinha lavar a louça e ela continuou dormindo como um bebê, apesar do barulho. Não havia motivo para perturbá-la, e decidi ir embora. Não podia nem deixar um bilhete de despedida, porque ela era cega, então simplesmente fui embora. Coloquei a carteira do neto dela sobre a mesa, peguei a máquina fotográfica e saí do apartamento.


O PESO DA FUMAÇA

Foi Walter Raleigh que levou o tabaco para a Inglaterra, e desde então virou o favorito da rainha. Ele costumava chamá-la de Rainha Bess. E fumar virou moda na corte. Tenho certeza que a Velha Bess deve ter dado umas tragadas com sir Walter. Uma vez ele apostou com ela que podia medir o peso da fumaça.

Concordo que é estranho. Quase como pesar a alma de alguém. Mas sir Walter era um sujeito inteligente. Primeiro pegou um cigarro inteiro, o colocou na balança e pesou. Depois acendeu o cigarro e o fumou, batendo cuidadosamente as cinzas no prato da balança. Quando terminou, pôs o toco na balança com as cinzas e pesou o que havia sobrado. Então subtraiu esse número do peso original do cigarro inteiro. A diferença era o peso da fumaça.

1. Auggie – Gerente de uma tabacaria no Brooklyn, Auggie divide seu tempo no bate papo com os desocupados que freqüentam a loja, leituras baratas e ensinar a manter a tabacaria ao deficiente aprendiz Jimmy.

2. Paul Benjamim – Um alter-ego de Paul Auster, Benjamim é um escritor sem inspiração desde a morte de sua esposa, viciado em cigarrilhas, ele freqüentemente vai a loja de Auggie Wren comprar mais fumo. Salvo por Rashid Cole, que evitou que fosse atropelado, ele passa a ajudar o garoto que percebe ser problemático.

3. Brooklyn – O bairro nova iorquino que faz parte dos 5 distritos (Manhattan, Staten Island, Queens, Bronx e Brooklyn), nele concentra-se todos os tipos de culturas. Foi lá que os Dodgers e o estádio Ebbets Field se mudaram para Los Angeles, em 1957.

4. Rashid – Um jovem negro que se mete em encrencas, mas salva a vida do escritor Paul Benjamim. Rashid também corre atrás de seu passado.


Wayne Wang conta que a idéia do filme surgiu quando ele leu o conto de Natal de Paul Auster no The New York Times, naquela época ele não conhecia o escritor, quando se encontraram, com Wang já com a idéia do filme, ele já havia lido todos os livros de Auster. Para surpresa do diretor, Paul contou-lhe várias histórias sobre a cidade enquanto caminhavam nas ruas do Brooklyn.

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